"Não se descuide de ser alegre - só a alegria dá alma e luz à Ironia, à Santa Ironia - que sem ela não é mais que uma amargura vazia." - Eça de Queiroz

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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Eu sei que ao descer, desço descalço (por Marc Rodrigues)





Eu sei que ao descer, desço descalço,
que o medo ergue-se em espinhos
e o degrau veste de escuro.
Eu sei que a verdade é um laço
bem feito de corda áspera,
em volta de um pescoço curioso.
Eu sei e adormeço num sono calmo.


Só para acordar num momento, pouco despertado
levantar e caminhar de corpo deitado,
procurar uma janela na parede escura,
tropeçar e cambalear no chão sonolento.

Sair à rua, dar de caras com um velho avarento,
que rosna sem ferrar e cospe no cimento
e afaga o pescoço que esconde com um lenço
e esconde no chapéu o rosto que talvez venha a ser meu
e desvia o seu olhar do rosto que talvez tenha sido seu.
Eu sei e acordo de um sonho agitado.

Levanto-me, banho-me, penteio-me, visto-me
engano-me, dispo-me, volto a vestir.
Dei por mim e o tempo passou, uns minutos.
Mas quantos não são a vida toda?
Eu sei e continuo numa vida calma.

Abro a porta e saio.
Eu sei que ao descer, desço calçado,
que o degrau é de madeira de pinho
e a clarabóia cobre-o de luz.
Mas não deixo de sentir espinhos
cravados nos meus pés nus.

sábado, 1 de abril de 2017

A pior coisa que podemos fazer a uma criança (por Marc Rodrigues)

"A vida passa e em passar consiste" 
- Ruy Belo

A pior coisa que podemos fazer a uma criança, embora seja inevitável fazê-lo, é ensinar-lhe a ler as horas. É dar-lhe um relógio de pulso e mostrar que a vida é tão redonda como de 12 a 12. É ensinar-lhe que cada passo é um tique ou um taque. É mostrar-lhe que a vida passa e em passar consiste. Dar-lhe um bilhete para ver a magnifica dança do tempo, tão bela e tão infinita, para que ele assista temente e choroso o momento em que o pano cai. Ao invés de, como em qualquer bom espetáculo, se levantar e aplaudir a última vénia da vida.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Inúteis, inférteis, rasgados, grotescos (por Marc Rodrigues)

Deixai-me dizer que sois um traço fino
e dormente na calada da noite obscura,
sem vontade, sem nascimento ainda,
sem expressão, num quadro sujo.
Sois jovens, bonitos, sonhadores,
Inúteis, inférteis, rasgados, grotescos,
de cera, de merda, de ódio, de cabeça
fechada, orgulho aberto e um tesão enorme
pela plasticização do mundo.
Achais graça à mutilação da vossa própria vontade,
caminhais nas ruas circulares do contentamento,
levais os bolsos cheios de desalento,
mas gostais das vossas calças bonitas.
E por isso, recusais a nudez.
Que problema há em andar nu?
Tendes medo que na vossa flor da pele
ainda não tenha tocado a primavera?
Deixai-vos de estações!
É tempo de tirar este comboio
da linha.
Eu não digo:
Vivam na margem.
Digo antes que não se esqueçam do fio de Ariadne,
porque os caminhos estão cheios de Minotauros
e pior.
Gostais da chama que tendes na palma da mão?
Lembrai-vos então da água que vos cerca,
evita a labareda e que vos fode.
E escolhei se isto é uma Elegia
ou uma Ode.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Óculos sobre o nariz ousado (por Marc Rodrigues)


Óculos sobre o nariz ousado,
nariz sobre a boca do povo,
Cabelo enrolado, poema cantado,
O teu verso será sempre novo,
Eu sei...
O teu Abril não cozeu na fervura,
Tiraram-no cedo, ainda frio e cru,
faltou-nos quem fosse mais como tu,
faltou-nos a praça de gente madura.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Samsa (por Marc Rodrigues)

"Quando todo o mundo é corcunda,
o belo porte torna-se monstruosidade."
- Honoré de Balzac


Cambaleio numa rua
onde todas as portas se fecham
enquanto passo.
Recolher obrigatório
que o meu aspeto horrendo e humano
impõe.
Uma rua,
toda ela,
metamorfoseada num gigantesco inseto.
No estreito, onde a rua se finda,
bem no fundo,
uma luz cintila,
vertical, retangular.
Aproximo-me.
Uma porta aberta,
na rua onde todas as portas
se fecharam ao ser bípede e
engravatado.
Fugiram como quem foge do homem
quando se é outra coisa qualquer.
Dou-lhes razão.
Piso o umbral e espreito.
Num gesto de boas vindas,
ali estava, belo e coleóptero,
Gregor Samsa.