"Não se descuide de ser alegre - só a alegria dá alma e luz à Ironia, à Santa Ironia - que sem ela não é mais que uma amargura vazia." - Eça de Queiroz

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sábado, 20 de janeiro de 2018

Abri os Olhos com Vontade (por Carolina Lopes)





Abri os olhos sem vontade, já o sol brilhava alto no céu, iluminando-me com os seus raios através da janela. O corpo ainda não respondia convenientemente aos meus comandos, a mente percorria todos os acontecimentos passados num frenesim, tentando assimilá-los, dar-lhes um sentido. Continuei deitada no chão da sala.


Os azulejos estavam frios, mas esse tipo de sensações já me tinham ultrapassado. Não sentia nada, a não ser uma dor imensa, uma sombra negra e sufocante que me envolvia. Abracei-me a mim mesma, numa tentativa desesperada de manter o peito intacto, que teimava em desfazer-se a cada memória da noite anterior.


Olhei em volta, pedaços do meu coração espalhavam-se como estilhaços de um espelho partido, e em todos eles podia ver o teu rosto, e nele, a expressão com que me tinhas deixado há umas horas. Pareciam agora dias, semanas, desde esse momento, o instante em que disseste finalmente que não me querias mais, o instante em que desististe de me amar.


Tudo deixou de fazer sentido nesse momento, o meu mundo desabou sob mim, deixaste-me sem propósito, destroçada, de joelhos nestes azulejos. Como eram perversas as memórias. Como eram atrozes e bárbaros os espinhos que se cravavam no meu peito. Mas eram tranquilizantes essas mágoas, asseguravam-me que não te imaginara, que tinhas sido real na minha vida, que em determinado tempo fui tua, embora nunca te possa ter considerado meu.


Era feliz a amar-te, era feliz a fazer de ti a minha vida, era feliz a fazer girar em ti o meu mundo. A mesma vida e o mesmo mundo que agora tinham desaparecido. Apenas restava esta sala, este chão, e os raios de sol que me expunham. Deixaste-me para sempre, mas não sem antes me despedaçares impiedosamente.


Faltam-me partes, sinto-me incompleta. Fragmentei-me aos pés de quem não me merecia. Entreguei-te o meu coração e a minha alma, sem qualquer hesitação. Agradeceste, guardaste-os e esqueceste que existiam. Esqueceste que eram tua responsabilidade, que tos cedera para cuidar, e deixaste-os abandonados. Agora que mos devolveste estão frágeis, debilitados por ter aberto mão deles tão facilmente, e a quem nunca os quis.


Gostava de poder chorar, as lágrimas têm o dom de aliviar a dor, deixando-a sair por entre o seu sal. Mas nem isso me resta. Os meus olhos estão secos pela amargura. Esgotei todo o meu pranto na ilusão de que ficarias. Agora apenas fixam a porta por onde saíste, o vazio que deixaste.


Hoje vou continuar deitada, mas amanhã hei-de levantar-me, juntar todos os pedaços de mim e sair desta casa. Hão-de voltar ao seu lugar, e apagar-te da sua memória, ficando apenas a profunda cicatriz para me relembrar que o lugar deles é em mim e não esquecidos na gaveta de alguém.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Alma (por Carolina Lopes)





Como é difícil expor a alma, dar a conhecer o nosso ser, abrir o nosso mundo. Dizem que é mais fácil fazê-lo com estranhos do que com conhecidos. Concordo! Revelarmo-nos a alguém que não nos conhece retira toda a pressão do julgamento alheio. É claro que todos julgam, mas o julgar de um estranho não nos assusta tanto como os olhares dos conhecidos.
No meu caso é sempre difícil expor a minha alma, levantar o véu dos meus pensamentos. Não gosto de abrir as minhas janelas ao resto do mundo, há vezes em que as abro a estranhos e alguns conhecidos próximos, mas fecham-se logo a seguir com ventos de tempestade.
Sou uma crítica de mim mesma, mantenho conversas infinitas com a minha alma. Anulo-me nas minhas próprias ideias e observações, agraciando-as com cinismo e descrença. Tenho tanto para dizer, mas abrindo a boca para falar sinto que tudo já foi dito cá dentro. Dito, ouvido, analisado, criticado e respondido. Não resta nada para os outros, tudo é guardado para mim. Coisas boas e más amontoam-se-me na alma, escorrendo por vezes em direcção ao coração, atingindo-o com um aperto desmedido, sufocando-me, agitando as águas dentro de mim, que se escapam depois pelos meus olhos.
Deixar correr pela tinta da caneta as palavas que me povoam a mente é agradável, mas não acreditem em mim. Minto e hei-de mentir, hei-de enganar com frases e gestos inocentes, capazes de convencer os menos experientes e causar apenas breves dúvidas nos mais conhecedores.
Minto porque posso. Enquanto a minha alma grita por liberdade, finjo e iludo para quem me vê e ouve. Mentir é mais fácil, traz menos complicações. Angústias da alma e lágrimas penosas trazem perturbações e desconforto, sorrisos acalmam e não acarretam remorsos.
Engane-se quem ler este texto que vos exponho algo de mim. Isto toda a gente sabe, mas quase nenhuns reconhecem. Somos mais felizes no mundo das aparências e fazemos tudo para lá permanecer.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Á Beira-Mar (por Carolina Lopes)





Outra vez aquele sufoco que eu tão bem conhecia,
o familiar aperto no peito, o já esperado nó
em que me enrolava a garganta,
a dor angustiante que me toldava a alma.

Todo o corpo entorpecido e,
por entre rasgos de lucidez,
, a raiva das palavras de conforto
e o abrasar dos olhares de piedade.

Não aguentava mais, tinha de sair,
projetei-me porta fora, arrastando a longa
cauda branca em direção ao mar.

Deixei-me cair na areia molhada, sentindo o torpor
dos sentimentos abandonar-me e as lágrimas
queimarem-me nos olhos, para no fim se reunirem
à água fria e salgada do oceano.

Não conseguia respirar, asfixiada pela dor,
pela sensação de ver arrancado do meu
peito o meu coração a bater.

Como seria feliz se o tivessem
levado, se o tivesse deitado fora;
como seria feliz se me tivessem
privado da capacidade de sentir.

Mas colocaram-no de novo cá dentro,
amolgado e maltratado por quem o teve nas mãos,
sensível a todo o ardor do desgosto,
inflamado pelas feridas que lhe infligiram.

A água ensopava o meu vestido branco,
dando-lhe uma nova tonalidade de marfim,
gelando-me os ossos a cada nova vaga.

Ali, apenas entre o restolho
das ondas e os soluços calados,
só eu sabia a dimensão do meu sofrimento,
do tamanho da vastidão do azul à minha frente.

Nada mais me restava a não ser a mágoa
incandescente que ensombrava a minha vida.

Deixaste-me sozinha, abandonada no mundo que era teu,
levando contigo todo o meu desejo e esperança.

Mas não te odeio. Não posso odiar
o meu carcereiro dos dias felizes.

Deste-me a felicidade e este foi o preço
que paguei, um preço que não considero alto
pela paixão que me trouxeste, pois trocaria
um só dia desse amor por uma vida inteira.

E que bem que eu amei, todos os dias me
fizeste apaixonar-me de novo, e nesses tempos
fui verdadeiramente feliz. Tudo me é cobrado agora.

A minha alma pelo teu amor parece-me um preço justo.
Lentamente entrei na água, rodeada do maravilhoso
tecido rendado, o véu ondulando ao vento.

Senti-me mais leve, as lágrimas já não ardiam nos olhos,
a respiração mais controlada, suspirei.

Ficou apenas o aperto no coração e o
torpor da água salgada a invadir-me os pulmões.